sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Detalhes de Cantares

Alguns detalhes citados por Salomão na canção são sutis, e ele os escreverá de memória em Cantares. Se a história é imaginada, se O cântico faz parte somente dos sonhos, é uma representação de um desejo profundo do coração do jovem, sua imaginação é muito detalhista. Ele descreve o romance como se nele estivesse.   

Sunamita corre como uma criança – Ct 1.14 Leva-me tu; correremos após ti – vira o rosto embaraçada, envergonhada diante dos olhos das filhas de Jerusalém, Salomão a percebe por inteiro “mais formosa entre as mulheres” percebe a forma e os contornos de seu rosto apesar dos enfeites “formosas são tuas faces entre teus enfeites”, percebe o cheiro de nardo que ela exala á distancia, enquanto ainda assentado no trono e ela em meio ao salão.. onde deviam haver outras pessoas...elogia a textura ou tessitura de sua voz.  Salomão nota machucados em seus pés, que certamente ela estava tentando esconder dele...        (2.13)
Pomba minha, que andas pelas fendas das penhas, no oculto das ladeiras... ele nota a beleza da voz da cantora...e a classifica como “doce”  (2.14) Salomão percebe o movimento dos cabelos de Sulamita ao vento do entardecer de Israel e o compara a um rebanho de cabras...ele nota detalhadamente os dentes da moça...e tece outra comparação...ele presta atenção ao ritmo e ao som das suas palavras, enquanto ela conversa com ele.  Antes prestara atenção ao canto (2.13) – ele a ouvia cantando quando subia as ladeiras!  e em 4.3 ele fixa sua atenção no modo como ela fala. Ele percebe a testa da moça mudando de cor!  - a tua fronte é qual um pedaço de romã entre os teus cabelos. – Percebe a simetria dos seios da moça, ainda sob o vestido! (4.5) Ele nota sua pele, até onde podia ver sem levar obviamente um tapa na cara, a vasculhou com seus olhos e diz que sua pele é perfeita, que ela não possui nenhuma mancha! (4.7) Salomão percebe como ele mesmo fica alterado quando ela segura de certo modo o colar que ela carrega constantemente. Ela brinca com o colar e a visão desse jeito feminino dela mexer com o adereço é para ele um gesto muito meigo.  Salomão cita o “cheiro dos teus vestidos é como o Libano” e se duvidar é de lá que eles vieram!  “Desvia de mim os teus olhos, porque eles me dominam” (Ct 6.5) Salomão percebe a intensidade do olhar da menina.
Creio que é importante frisar isso. É um dos recursos dramáticos mais utilizados em filmes. Se você retirar a força dos olhares, a dramaturgia deixaria de existir, assim como o cinema. Na maioria dos filmes românticos, um olhar define quase tudo. Essa é a primeira vez na história humana que literariamente é citado aquilo que nós hoje vemos todos os dias  na televisão, no teatro e no cinema.  2564 anos antes de Shakespeare. Foi Salomão que primeiro anunciou ao mundo a força do olhar apaixonado. Porque ele sentiu na pele essa força.
O leitor de Cantares está diante de um mundo novo, um mundo de detalhes e percepções que não fazem parte da literatura de sua época.  Nem das Escrituras. Os textos das Escrituras nos mostram poucas características de seus personagens.  Alguns nos são apresentados tão brevemente quanto um suspiro. Enoque nasce, vive e é transladado em dois versos. Três se somarmos a profecia dele que nos é revelada na epístola de Judas. Não temos detalhes sobre a aparência de nenhum personagem bíblico. Tudo que sabemos sobre a descrição física de Ester, Sara, Rebeca, Raquel, é que eram mulheres formosas, nada mais. Não há esse grau de detalhe tão comuns na literatura atual, influenciado pelo cinema que capta em close-up as pequenas mudanças nas expressões faciais de seus personagens. Os textos são curtos, as descrições sobre sentimentos, sensações e os sentidos das pessoas presentes nas Escrituras resumidas, lacônicas.  A maior parte do tempo o estudante das Escrituras necessita imaginar o modo, as roupas, a fala, os sentimentos, as expressões dos personagens bíblicos. As ações proféticas são sempre desmedidas, desproporcionais, não usuais, para que fiquem em RELEVO nas Escrituras. Única vez, de um modo mais sutil, por assim dizer, veremos Jacó puxando para si seu filho para “cheirar” suas vestes, mas a maioria dos sentimentos para serem vistos pelos povos da antiguidade, para que pudessem distinguir mudanças drásticas do contexto tinham que ser “dramáticas”. Exageradas.  Nós lemos quando José chora a respeito dos irmãos, que ele está no “limite” de sua emoção, tão comovido em ver a mudança de atitude de seus irmãos depois de vinte anos de afastamento que ao chorar é ouvido em todo o palácio de Faraó.  Essa nuance sutis de sentimentos é estranha à percepção dos antigos. Quando oravam, o faziam em voz alta, a oração silenciosa em publico era algo desconhecido! Quando Ana ora balbuciando palavras sem emitir som, quando chora diante da tenda da congregação derramando lágrimas silenciosamente, é tomada como bêbada!
Por toda a Escrituras as emoções são contidas, abreviadas, mostrando-se para nós geralmente sentimentos nos limites humanos, ira, raiva, desgosto, medo, coragem.  Porém, Cantares derrama-se em sentimentos, emoções e sentidos!
Os atos dos profetas para serem DISTINGUIDOS como atos proféticos são SEMPRE exagerados, são teatrais, são dramáticos.  Os hebreus esperavam sempre de seus profetas atitudes e atuações dramáticas, diferentes, cinematográficas. Quando os judeus estão diante de Jesus e lhe trazem a moça que foi pega em fragrante de adultério, Jesus sequer olha para eles, fica sentado escrevendo com um pedaço de madeira rabiscos no chão.  Os judeus ficam desconcertados, estão berrando, gritando, trazendo uma condenada à morte para um mui próximo apedrejamento, esperando FORTE reação emocional, exasperação, um bate-boca sem precedentes, uma tremenda gritaria, e lá está ele, SERENO, dócil, sem movimentos exagerados, sem uma reação febril,  o que era de se esperar.  Nada disso. Jesus somente ESCREVE... Com a paciência de um caligrafo chinês...
Há uma metáfora profunda de comunhão espiritual contida em Cantares. O modo com o qual o Espírito de Deus tratará com sua Igreja.  O Amado percebe de um modo incomum os pequenos e sutis movimentos de nossa alma.  O mistério do relacionamento do crente com Deus é de uma suavidade ímpar. A celebração da Nova Vida em Cristo não nos leva a uma constelação de sentimentos exagerados. Nossa alma não é perturbada por poderes incompreensíveis que nos alterem a consciência de modo a nos tornarmos semideuses. Nossa consciência não é alterada a ponto de perdermos nossa humanidade. A presença de Deus em nós é muitas vezes imperceptível. Haverão momentos exagerados, emocionalmente e espiritualmente falando, (tal como João na ilha de Patmos, Daniel quando recebe Miguel, Pedro a frente da Porta Formosa, Paulo abraçando Eutico que caiu de uma janela e ressuscita nos braços do apóstolo, dias de sonhos, de coisas espirituais mais profundas) mas na maior parte do tempo de nossas existências nós perceberemos ao Espírito de Deus em nós como percebemos ao nosso próprio coração. Suavemente.

O Espírito de Deus nos percebe como Salomão percebia a Sunamita. Apaixonadamente, completamente, abrangentemente, profundamente, detalhadamente.  Essa capacidade transcendental de Salomão perceber a amada, é uma sombra da capacidade do Espírito perceber nossas vidas, os movimentos do nosso coração.  E através deles, ler continuamente nossa alma. 

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