quinta-feira, 1 de setembro de 2011
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Das Profundezas
Baseado em certa mudança de andar de antiga equipe de uma empresa brasileira...
A ata de reunião que decidia a mudança de andar da galera de estimativa de custos foi despachada perto da meia-noite. A tradicional reunião de reorganização anual do prédio em que ficavam os departamentos de Engenharia fora realmente, muito tensa. Três comitês e doze propostas foram agressivamente debatidas pelo grupo gerencial por quase três horas. A crescente taxa de ocupação do prédio, assim como as alegações de futuras demandas de pessoal, em função do crescimento exponencial da empresa, geraram a necessidade de soluções de alocação de gente realmente radicais. Para otimização de custos, o prédio também reunia, além de Servidores de Dados da empresa, vasta rede de laboratórios. Incluindo um especial de geologia das profundezas - Criado para estudos sísmicos - Resumindo a dita reunião, por apertadíssima votação, venceu a proposta de colocar a equipe de Estimativa ao lado do dito laboratório.
O laboratório ficava cerca de 23 Km de distância. Linha reta em direção ao centro da terra.
Sim.
A vinte e três quilômetros de profundidade.
O gerente do setor de Estimativa de Custos tremia ao ler a ata de reunião. Uma secretária desmaiou com a notícia e um dos orçamentistas do grupo teve uma súbita queda de pressão arterial. O prazo para mudança era de três dias. O gerente ainda tentou negociar. A outra opção também não era muito vantajosa. A equipe não foi informada sobre a segunda possibilidade, mas não ousou perguntar em virtude do olhar aterrorizado do gerente setorial.
Às sete horas da manhã de uma quinta-feira, sete pessoas entraram com suas caixas repletas de papeis no elevador – 76 (Menos Setenta e Seis). Tinha um ascensorista que os olhou com muita compaixão quando o grupo, formado de três homens e quatro mulheres, entrou no elevador. “–76” significava: “setenta e seis andares negativos”. A descida não demorou tanto quanto o esperado. A expectativa na abertura da porta do elevador era intensa, alguns engoliam em seco. As portas se abriram a setenta e seis andares abaixo da linha do solo. Havia ali um longo corredor e uma vasta rede de tubulações. As paredes eram absolutamente escuras, talhadas na rocha, na maioria de sua superfície estava coberta por fina camada líquida e quente de água de estranho aspecto. No final do lúgubre corredor havia uma espécie de trem suspenso por grossos cabos. Possuía oito lugares. Certa voz metalizada solicitou que colocassem os cintos de segurança enquanto as cabines eram cobertas automaticamente por vidros esfumaçados. Os cabos tensionados começaram a tremer e com um impulso fenomenal o veículo começou seu movimento espectral. Para baixo e avante. Aos quatrocentos km/h a estrutura do bólido rangia como fosse se partir. Talvez fosse. Porém, suportou bem a desaceleração. Viu-se a plataforma que estava suspensa sobre um determinado abismo na primeira parada. As portas se fecharam após a passagem do pequeno veículo e um sistema de pressurização ruidoso entrou em funcionamento. Dois operadores da “Passagem para o Abismo” como eles chamavam a estação de transferência, vestidos com roupas especiais, para suportar altas temperaturas, recepcionou o a equipe desconfiada. O grupo vestiu também roupas especiais, monidas de capacetes transparentes que encobriam toda a cabeça, como escafrandos, enquanto ouviam uma assustadora palestra de segurança que os ensinava a utilizar o suporte de vida do traje, em caso de emergências. Certo alarme começou a ecoar e atrapalhar a palestra, mas o auxiliar de segurança da “Passagem” continuou sua dissertação como se nada estivesse ocorrendo. Foram conduzidos até um elevador de carga. Com porta pantográfica. Vestidos como astronautas desceram cerca de 800 metros até a passagem numero 2, onde um mecânico de manutenção os aguardava. Passaram por centenas de tubos suspensos e uma nuvem de vapor os cobriu na entrada do “Mergulhador”. Mergulhador era o nome do veiculo que descia verticalmente até o setor 23. Tinha uma aparência estranha, com partes azuladas do metal, algumas tubulações de aço, doze eletroímãs espalhados com bobinas feitas por barras de buckypaper (vinte vezes mais forte que o aço). O fato é que o Mergulhador era basicamente uma liga de titânio e tungstênio. Os imãs serviam para acelerar, frear e impedir que veículo encostasse-se às paredes do túnel na hora de descida. As portas do veículo se abriram, mas ninguém ousou entrar. Até que ouviram a primeira explosão. Alguma coisa havia explodido, e o que quer que fosse fez a plataforma tremer. Assustados entraram e o veículo deu início, após travar as portas a seqüência de lançamento negativo. Uma das moças da equipe levou a mão à boca e disse:
- Acho que vou...
Não teve tempo de terminar a frase... O veículo abruptamente se deslocou. Então entenderam porque o chamavam de mergulhador.
Havia um termômetro digital que marcava 230 graus na parede do veículo. Uma das tubulações hidráulicas internas começou a vazar, quando o mecânico que estava a bordo começou a bater nos tubos com uma enorme chave inglesa. O marcador de pressão a esquerda chegou no vermelho quando as luzes de alerta próximas ao teto da cabina se acenderam. O ruído da desaceleração foi ensurdecedor. Havia janelas ou escotilhas que iniciaram a trincar à esquerda e a direita dos assustados membros da equipe. Então a porta de acesso abriu, e por um instante todo o interior da cabine se tornou avermelhada, no instante da pressurização...
São três horas da tarde. Sete pessoas assustadas saltam no primeiro andar enquanto o ascensorista do -76 lhes sorri, com oportuna afeição. As caixas haviam queimado na abertura da porta do Mergulhador, por sorte o mecânico conseguiu reaver o comando do módulo... Uma das integrantes larga no chão uma caneta bic derretida.
O ascensorista sorri e lhes acena:
- Até amanhã!!!
Então, as portas do -76 se fecham.
Welington José Ferreira
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
O menino e o relógio
The skinny kid with indigenous descent runs like the wind northwest to the small apartment, pressing his small hands hidden in his trembling fingers pinched her little treasure. His breathing and his eyes alert to greenish-brown eyes betray his uneasiness. The small apartment where he lives does not offer the appropriate refuge to their destructive intentions. Search inside the room, sees the girls picking photos for fashion magazines in her mother's seamstress, who paints red streaks in brown paper to define the terms of weaved cloth on the table.
He knows that there would not be the place of his magic act. Enter one of the rooms and other surprises customer who makes a test of a lime green dress, smiling at her slim and slender reflected in the mirror glass that belonged to her great-aunt.
Know that there would not be the place of his magic act. Finally, as the character Lucy chronicles of CS Lewis, sees the humble two-door cabinet in the second quarter against the wall peach, festooned with decals made by roll of painter. Enter your doors, closing it and then soak up the thick darkness, between hangers, dresses, socks, jeans. Sweating profusely, because of the intense heat of that summer afternoon lost in time.
In the shadow of the old cabinet he delivers the impossible task of dismantling the unmistakable object. The alarm clock that picks up on the dresser beside the bed of their parents. Instrument to measure the time before the digital clocks, absolute mechanisms of the ancient art of mechanical watch, full of tiny, precise parts.
With movement impossible, lacking tools, helped by strong teeth, patiently dismantles the gears that define the time, while his mother searches the rooms looking for her. The sun sets over the land when some hours this put out of the closet with your head sweaty disheveled hair, look of mad scientist. The portion of people out with dozens of pieces in their skillful hands.
Then, with smile of a victorious warrior, sits on the floor of parquet flooring, moving parts: the hands, the mirror, the glass, the coil spring, bolts, separating the precious central gear with the thumb and indicator.
He then places it on the floor, with its axis touching the floor and the edge bite as an extended wing parallel to the wooden floor.
In a vigorous movement to turn ... What a perfect pawn that ignores air resistance. The exact gear turns restless, despising the time a day helped to measure. Until his mother, horrified at the death of the brave clock, there stunned the tragedy spread on the floor of the room, the same clock lost her son with bare hands in an act of science that was more like magic, dismantled ...
Just to make a top
sábado, 18 de julho de 2009
A HARMONIOSA E RELAXANTE ARTE DA DIGITAÇÃO
A HARMONIOSA E RELAXANTE ARTE DA DIGITAÇÃO
Mem Ex Group
- Digita essa planilha de custos aqui também. Não esquece de totalizar as colunas e fazer a correção pela variação do dólar. Quanto ao outro texto, o da carta em inglês, preste atenção na carta manuscrita que eu estava com muita pressa na hora de escrever, e pode ser que tenha algum erro. Não esquece de corrigir. Com relação ao memorando, só se preocupe com a itemização, com a pontuação e com os termos técnicos. Sei que ele fala tubulações industriais e de vasos de pressão, mas os termos são normalizados. A normas de soldagem estão aqui. Olha, é tudo pra hoje, dá seu jeito.
Dizendo isso, o gerente saiu...
Aline olha espantada para a tela de seu ultrapassado computador. A tecla Shift já estava caindo de tanto levar pancada. Vez por outra a tela piscava e perdia a cor.
Olha para o relógio no canto da tela. Duas horas para o término do expediente.
Aline sua frio.
Abre quatro janelas ao mesmo tempo. Quase levando seu Windows 95 a bancarrota. Vai exigir mais do que sua poderosa máquina é capaz de outorgar. O telefone não para de tocar. Ela digita o texto em inglês no meio da planilha. Tenta corrigir e o Windows trava. Tenta reiniciar. Uma tela azul dizendo que o micro foi desligado incorretamente aparece. Um tal de Scandisk. Uma barra de execução para em 56 %. Setores ruins foram encontrados. Os olhos de Aline faíscam. Ela manda o software continuar. Ele pergunta se quer salvar as alterações num disquete. Cadê a caixa com disquetes? Sai da sala e vai até a secretaria do setor buscar disquetes. Não tem disquetes. Vai ao setor do outro corredor buscar disquetes. Quando volta o micro apagou. Acalme-se; diz a si mesma. Esbarrou no estabilizador. Religa o micro. Recomeça o suplício.
Enfim aparece a tela de início do Windows. E depois some.
Dois minutos de tensão.
Começa a entrar o Windows. Uma tela de logon solicitando senha aparece. Ela coloca a chave e a senha. Outro minuto de espera. O Windows diz que não tem nenhum servidor disponível pra efetuar o tal do logon.
Acalme-se Aline.
Ela tecla Enter
Aparece a tela de detecção automática de hardware. O Windows encontrou um novo componente. Como assim, novo componente? Ela tenta contornar o detetor, diz que não quer instalar nada. Aparece outra coisa detectada. E depois outra. Enfim começam a aparecer os ícones do sistema. Entra um aviso dizendo que a placa de vídeo está com problemas.
Acalme-se Aline.
O detector de vírus descobriu uma virose. Vírus de macro. No arquivo em que ela estava trabalhando. Quer limpar o arquivo? Ela responde que sim.
O antivírus apaga o arquivo.
Ela põe a testa sobre o mouse. Acaba clicando no ícone do correio. Infelizmente a rede não está entrando e o programa trava. A custa de muito CTRL-ALT-DEL ela destrava o Windows. Recomeça a digitar. Ferozmente. Aparece na porta o cara da CPD dizendo que vai ter um desligamento geral de dez minutos as três e quinze. Ela olha para o relógio. Duas e quarenta e cinco. O telefone toca novamente. Aparece uma tela azul dizendo que houve um erro de sistema. O coração congela. Ela dá um Enter sem esperança e o Windows volta. Acalme-se Aline. A menina da limpeza aparece e esbarra na mesa. Os papéis voam pelo chão. Acalme-se Aline. Dez minutos para o desligamento acontecer. Três dos textos estão adiantados, falta reformatar a tal planilha. A tecla "a" travou no meio do terceiro texto. Duas páginas e dois mil e quinhentos e vinte e dois "a"s depois ela consegue destravar. Quatro minutos para o desligamento. As luzes se apagam. Eles adiantaram o desligamento. O No-break resistiu bem. O micro ainda está ligado. Ela tem cinco minutos para salvar o que digitou antes de perder tudo. Quer dizer, teria se o indicador de energia do No-break indicasse plena carga e não 50%. Começa a tentar terminar e salvar os textos. O protetor de tela entra. Não, agora não, pensou. O No-break começa a piscar. Ela precisa de tempo! Pense Aline! Pense Aline. Decide desligar o monitor para economizar energia, fechar os programas e salvá-los às cegas. Quando está para digitar o último comando o No-break apaga por completo. Três segundos depois seria a vez do micro. Nessa hora a luz retorna. Ela reacende a tela e o último texto ainda está lá. Então suspira aliviada. Entra o gerente e avisa que devido a uma viagem pela manhã já não terá muita urgência dos memorandos. A tela azul de erro fatal do Windows aparece nesse momento. Ela fixa os olhos na tela azul e então olha para o gerente. Na sua mente só aparece a expressão:
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error.
Fatal error
By WeLL
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Jagunçada
Jagunçada.
Uma história de cão entre um homem e uma mulher.
Cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, chegou de novo na cidade, e a multidão se acomodou. Era a última vez que contaria a história que por cinquenta anos contou, como jura feita a muito, a quem não se sabe, a quem não se viu.
Trazia sempre aos lombos, um alforge, e uma sacola com alguma coisa que só mostraria quando chegasse a hora.
A cidade em rebuliço esperaria o entardecer, porque no dia ditoso, quando contasse a Jagunçada, pela derradeira vez, o que levara consigo por quase cinquenta anos, finalmente, iria mostrar.
Como falava o cantador. As crianças em polvorosa, pois todos queriam ouvir, outra vez a jagunçada, outra feita, outro senão, a interminável história e sua canção.
E assim que entardeceu, começou, o contador a contar seu causo:
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo. Era ele assim conhecido. Cabrunco odioso de mal. Jagunço afamado da região que compreende a pequena faixa entre Ponta-porã e Juazeiro do Norte. Cabra jurado de morte por Cabra-ruim era um homê marcado pra morrer. Qual como cabra defunto seria tido, aos olhos da populaça trêmula, que a muito adentrava as noite pra sepultar os matado, daquele cabra matador.
Longe de mim, criatura abestada, teu distino tá traçado, e num se aproxegue naum, que na várzea da artilharia pode sobrá tiro pra mim.
Assim excomungavam aos mortifundos, quando os coronéis avisavam que Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo estava pra chegar.
Fizeram-lhe, num dia nebuloso cujas sombras já se esvaem, emboscada ferina com os mais perversos matadores que o dinheiro podia comprar. Vinte e três homens, cada um com trinta quilo de balas, com mais facão na cinta que unha de jaburu nas mão, se atiraram incólumes pelas costas do caramunhão. Triste sina dos matuto que findaram entre as bala do marvado matador.
No mermo dia em que Cabra-ruim-de-más, chorou uma lágrima tormentosa pelo olho que ainda tinha, compungido o coração.
Pois nunca, em toda sua andança desgraçada como exímio matador, matara tão pouca gente de uma só feita.
Somente vinte e três...
Corpo que nem uma peneira, Cabra-ruim tava acostumado, mas lhe incomodava a média.
Homem macho que nem eu num mata menos de trinta. Como é que foi acontecer? Tô perdendo a postura, tô desvalorizado? Vinte e três! Só de raiva vou passar a cidadela no facão, pra essa gente miserável respeitar quem é o cão.
E assim seguia aquela praga, jagunço de renome, eta cabra ruim sim sinhô.
O afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro, Capitão, azucrinado pelos feitos desta peste mortifúndia, arresolveu convocar o jagunço derradeiro, NA VERDADE, UMA MUIÉ. Amorosa da Caatinga linda. Mais conhecida como Diga-adeus-que-vais-morrer, de quem contava a lenda, seria o quinta cavaleira do apocalipse em fase de treinamento, convocada para tomar 'sastifação' com o recalcitrante marfegaçanho. Aquela muié sofrida, que perdera sete irmãos, pai, mãe e cabritos, nas fomes das secas incontáveis nas tormentas do sertão, se tornara numa lenda tamanha que fazia Maria-bonita parecê uma doce donzela sonhadora. Trocentos homens jaziam sem cabeça pelas estradas sertanejas, frutos da pontaria daquela órfã impressionante.
O dia inda tava claro quando a jagunça Diga-adeus entrou na cidade sofrida de Nazaré das Farinha. Uma romaria de matuto rumou para qualquer lugar, entre o ontem e o amanhã, porque sabe-se lá que iria acontecer quando os dois cabra da peste, arresolvessem se bulir.
Esticando o queixo duro, com voz de paca atarracada grunhiu Diga-Adeus:
Pra onde ocês vão, raça de matuto fugidor?
Nóis vamo pra duas légua depois que o cafundó-dos-Judas termina! Gritou a populaça.
E assim se ia a aterrorizada multidão.
Cabra-ruim se encontrou com Diga-adeus as duas da tarde em frente do cemitério. Cabra-ruim com uma pá nas mão, sorriu amostrando os dois dentes escurecidos que ainda tinha e gritou:
Vem cá minha nega, já preparei procê um lugar, bicha safada, pra tu num tê que se aperreá com aluguel. Nunca mais. Tá querendo tu segurá o toro brabo com as mão? Vô tê cortar aos poco, pra tu aprendê a respeitar os cabra-macho, muié despeitada!
Cumpadre Cabra-ruim, homem perverso de dá dó, aprumado na arte do exterminío, tá na hora, mormente chega pra qualquer um de nós, de intendê que as pessoa são que nem os indivíduo. Que bobagem é espirrar na farofa. E que boi lerdo bebe água suja.
Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo nem se coçou. Um tédio só. Eta cabra faladora, essa tal de Diga-Adeus.
Tá querendo me matá falando, muié?
Mãos crispadas de Diga-adeus sobre as empunhaduras dos facões de cortar cana:
Ao assustado a própria sombra assusta? Burro velho não toma freio? Cabra-ruim-de-más; cachorro comedor de ovelha, só matando. Diz então, cabrunco, como é que tu qué morrê.
Cabra-ruim responde.
Cavalo bom e muié valente, a gente só conhece na chegada.
Cabra-ruim cospe no chão. Se é que aquilo que saiu e sua boca podia ser chamado e cuspe. Levanta a aba da chapeleira de couro de toro castrado a unha por ele mesmo, dá uma rabanada de olho, aquele tipo de olhar enviezado que quando não aleija, mata, três fungadas e um buchicho e então fala:
Tanto acoar em sombra de corvo, pelo menos me diverte um pouco. Mas tu sabe que te dou valor. Por isso tu vais morrer aos pouco, coisas que não faço com todo mundo, só com os privilegiado. Agora vamo nóis cerra a noite, cabrita marcada pra morrer.
A tiranbança desenfreiada começou ali, os dois pulando mais que corisco em dia de temporal.
E assim foi.
No mais porreta de todos os enfrentamentos.
Incendiaram Nazaré das Farinha. Entraram por dentro de três plantação de cana, e num deixaram uma mardita em pé. Os gados desperado daquele confronto intenso, correram pro lugar errado e se atinaram em meio aos matadores. A boiada foi destroçada pela força dos peleantes. Era rebenque subindo, talagaço feito chuva e nada parava o gasqueaço daquele intenso entrevero.
E assim foi por quase três dias.
Cabra-ruim já tava todo cortado. A calça de couro de cabra de Diga-Adeus mostrava sua perna torneada, arranhada e suada, mas de todo modo a perna de uma muié.
Pela primeira vez em toda sua vida, Cabra-ruim vacilou. Diga-Adeus arfava quase sem se mantê de pé. A mão tremia enquanto seu olhar se fixava na fronte do caramunhão. E pela primeira vez em toda sua lida, Diga- Adeus se admirou de um homem.
Mas, partiram resolutos um pra dentro do outro, que aquilo num era hora de namorá.
Eta confronto arretado das terras queimadas, onde o sol inclemente decidiu jamais se afastar!
E assim foi. Por mais dois dias.
E quem sabe quando essa peleja intensa, arresolvia terminá?
Inté que chegaram as tropas di coroné Serapião, amigo de Rufoespino, parente
do afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro Capitão. Trezentos jagunços treinados pelas mãos do Capitão.
Os cabra cercaram a cidade armados até a unha dos dedos dos pés.
Vixe Maria! Como falava o contador! Então cansado, o cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, por ordem da promessa feita, dispois ocês hão de saber a quem, arresolveu terminá.
Pra encurtar essa lida, desta história renhida, como fiz, foi minha sina, agora livre vou-me embora, acabou-se, ai vou eu, pois na vertente dos dias, no cochicho da noite e quando fina a promessa, me vou.
Lentamente o contador abriu a bolsa, para o espanto da multidão, e delas cairam dois cranios, feitos pedaços, no chão.
Os cranios foram rolando batendo entre as pedras dos paralelepípedos caiados de branco, até pararem.
E um menino de sopetão, tomado de grande assombro, gritou e fêz a pergunta, do meio da confusão:
Porventura são esses os cranios de Cabra-ruim e da desgraçada Diga-Adeus? Os infame matador, naquele mês de horror, viraram enfim vatapá?
A multidão acompanhou em coro a pergunta:
Responde, cantador!
O contador entortou a boca, balançou a cabeça, deu um silvo e sua mão declinou.
Então quase que rindo, não se conteve e bradou:
Esses são os corenéis Serapião e Capitão, dos trezentos condenado, só eu sobrei, ninguém mais não... Cabra-ruim e Diga-Adeus fizeram o que nóis nunca iria esperar. Quando se viram cercados, decidiram por de lado as desavenças e entraram por dentro da Caatinga, os mardito. Nóis procuramos por três semanas. Nos embrenhando pela ata virgem, perdemos, inda naquela semana, mais de trinta cabruncos. Foi quando com armas tiradas Padre Cícero sabe da onde, Aquela muié bandida e aquele capanga de nome, arresolveram nos matá. Me deixaram viver pra que eu contasse a história, levando eles inté a fazenda de Serapião e Capitão.
A multidão ovacionava a história renhida, daquela luta marfadada, daquela jagunçada terrível.
E de novo o menino curioso sem se conter, sem segurá, questionou:
E que fim levou, os jagunços, desta história que finda?
O contador parou. Se virou. Olhou sério a multidão, agora silenciada. Os olhos atentos, o murmúrio do vento. Então falou:
Intão, mormente finda a lida, a sina... juntaram os trapo, as ferida e a dor,
e si uniram pelos sagrados votos do matrimônio...
E sem se virar de novo,
o cantador...
...disse adeus.
Autor:
Welington José Ferreira
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
Sansão - Os Portais

Nasceria uma criança. Um anjo avisou isso aos seus pais. O anjo não disse seu nome, mas revelou o nome da criança. Nunca outro homem faria as coisas que ele haveria de fazer.
Nunca.
Assombrou as nações com feitos assombrosos por quase 20 anos. Seu nome virou uma lenda. Sua história uma canção. Por décadas as crianças do oriente médio só iriam dormir depois que os pais lhes falassem a mesma história que jamais cansavam de escutar. A vida era maior do que aquilo que podiam ver. Haviam poderes desconhecidos trabalhando na terra. Constatar que o mundo era sobrenatural. Se Deus pode fazer isso com um homem, tudo Deus pode fazer. Se um homem nasceu assim, outros poderiam nascer fazendo coisas semelhantes. Talvez maiores.
Bastava que existissem anjos para anuncia-lo.
Bastava que Deus assim o determinasse.
Foi assim com João Batista.
Foi assim com Jesus.
Pode ser assim conosco também.
Mesmo que não hajam anjos para anunciar.
Jz:16:
Jz:16:1: E FOI Sansão a Gaza, e viu ali uma mulher prostituta, e entrou a ela.
Jz:16:2: E foi dito aos gazitas: Sansão entrou aqui. Cercaram-no, e toda a noite lhe puseram espias à porta da cidade; porém toda a noite estiveram quietos, dizendo: Até à luz da manhã esperaremos; então o mataremos.
Jz:16:3: Porém Sansão deitou-se até à meia noite, e à meia noite se levantou, e arrancou as portas da entrada da cidade com ambas as umbreiras, e juntamente com a tranca as tomou, pondo-as sobre os ombros; e levou-as para cima até ao cume do monte que está defronte de Hebrom.
Os Portais (Jz 16.1-3)
Era por volta de dez horas da noite. O Aviso da presença do fanfarrão hebreu já havia sido anunciada por toda a fortemente armada guarda da semi-metrópole de Gaza. Havia chegado o tempo de desmistificar a lenda da invencibilidade daquele cananeu beberrão. Os muros altíssimos impediriam que ele pulasse e já que os relatos sobre ele não mencionavam nenhuma capacidade de vôo, dali o sujeito só sairia sem os olhos, devidamente decapitado. O cabra safado havia pernoitado com uma prostituta. Não sabia viver sem mulher. As mulheres ainda haveriam de ser sua perdição.
O tal renegado, conforme contaram, tivera sua esposa trucidada por gente do mesmo povo daquela cidadela. Talvez fosse esse o motivo de voltar vez por outra ali. Também havia sido execrado pelos pais. Triste curriculum. Os generais dos exércitos da Filístia tinham medo de um bêbado, fracassado no casamento, desprezado pelos pais, que pelas madrugadas se divertia com prostitutas de quinta categoria. Eu havia sido promovido naquele ano ao posto de comandante e tinha 400 homens ao meu dispor pronto a capturar o mais temido soldado do povo hebreu, embora pessoalmente considerasse um desperdício tamanho contingente para capturar somente um homem. A cidade estava fechada e só tinha saída pelos portões gigantescos que eram travados ao anoitecer. Duzentos homens não o arrastariam uma vez que as travas estivessem colocadas. O muro onde ele se engasta tem três metros de largura e os batentes e encaixes são de ferro. É o fim do tal imortal, conforme contavam as lendas a respeito dele. Pensei em enviar uns três grupos para cercar o tal prostíbulo, porém ele já havia saído em direção aos portais. Sem saída. Morto. Escreverei nos muros da cidade minha vitória com o sangue do infeliz. Já me imagino recebendo as chaves da cidade, o tribunal sagrado me concedendo o título de filiação divina. O cortejo com as dançarinas e as festas comemorativas à noite.
Por toda à noite a ordem era esperar em silencio até o momento de cair sobre ele e destroça-lo. Quando amanhecesse já não poderia mais se refugiar nas sombras para se esconder. Por volta da meia-noite nós o cercamos junto ao portão. Posso ver o medo nos olhos do desgraçado. Um rato na ratoeira. Os lanceiros se preparam, mas eu dou ordem de não atirarem. Mando pegar minha espada. Meu escudeiro trás a capa dourada com a empunhadura ricamente adornada de púrpura com os laços cor de carmesim. A lua é refletida no metal prateado da mais preciosa espada do reino da Filístia. Três gerações de guerreiros haviam empunhado a afiadíssima lamina em inúmeras e gloriosas batalhas. Levanto a espada pa o alto agradecendo a Dagom a honra de exterminar com o grande guerreiro dos hebreus. Eu mesmo vou arrancar a cabeça do condenado.
Meus soldados se afastam enquanto caminho com passos firmes em direção ao quase finado homem de guerra das tribos dálem do rio.
Pelo que observo, o pobre coitado enlouqueceu. Ainda estava um pouco distante dos portais, mas pelo que parece a infeliz criatura o está tentando abrir com as mãos. Sozinho. Um inseto burrinho, diante da imensidão dos portais, cujas asas vou arrancar.
Era pior do que eu pensava. O que é que o desespero não faz com um indivíduo. Ele não está tentando abrir; está tentando arrastar os portais. Animalzinho irritante. Dois meses de preparativos foram gastos para suspender os gloriosos portões de Gaza. Dezenas de escravos foram esmagados instantaneamente quando uma das folhas da porta magnífica arrebentou as grossas cordas que eram tencionadas pelos carros com animais. Eu era pequeno na época que os portões foram erguidos, dois anos após seu projeto e construção. E agora um único homem, filho de um povo sem honra, de uma tribo de beduínos, de errantes, tenta erguer as consagradas portas de Dagom, cujo peso excede o entendimento. Ainda me lembro do cheiro do azeite e do sangue de crianças imoladas na consagração dos portais. O som das trombetas da invencível Gaza reverberando a glória da mais poderosa fortaleza criada na terra desde a antiga cidadela de Jericó ainda estava nos meus ouvidos.
Foi quando escutei o barulho ensurdecedor de rochas se partindo. Foi quando, a belíssima e hereditária espada com meu nome gravado caiu da minha mão. O som era semelhante ao de um raio caindo, só que não haviam nuvens carregadas sobre o céu estrelado daquela noite.
Por detrás de mim o grito de terror de uma multidão de pessoas, (e não era dos civis da cidade). A visão era por demais aterradora. Os símbolos do Poderio de Gaza, uma das maiores cidades do império Filisteu, estavam sendo arrancados diante dos meus olhos estupefatos. Um único homem erguia sobre suas mãos ambas as folhas das portas, suas umbreiras e sua trave, Os engastes de ferro fundido e bronze se partiram diante daquela força gigantesca, enquanto pedaços do muro com três metros de pedras lavradas rolavam no instante em que os portais eram levados para fora da cidade. Em nenhum momento ele as arrastou pelo chão. Impassível ele as colocou sobre si e se foi. Correndo.
Ele se foi, levando em suas costas os portais.
Perguntei se havia algum voluntário para sair no seu encalço e o silencio foi minha resposta.
Três dias depois saímos com um grupo de patrulha a procura do semi-deus, parando aos pés da montanha que olha para o cume do Hermon,
Soube depois que o homem que fizera tal maravilha tinha cinqüenta anos na época em que fez tal coisa. A mesma idade que tenho hoje, quando visito de novo o Monte dos Portais. Os portais já não existem mais, foram queimados há dez anos atrás, quando finalmente conseguiram destruir o tal homem. Quatro mil pessoas pagaram com a vida a ousadia. Na época eu não acreditava em nada, somente na força de minha espada, que por sinal perdi na correria daquela noite miraculosa. Olho para o alto e adoro agradecido o Deus que permitiu que vivesse para contemplar tais coisas. A muito não sirvo mais ao sanguinário Dagom.
Hoje me dirijo ao santuário de tenda, erguido em Siló, como fazem todos os anos aqueles que como eu também fizeram o voto de nazireu.
A circuncisão foi a única coisa incômoda nessa nova etapa da minha vida...
(... E os cabelos compridos incomodam um pouco no verão).
Projeto Codinome
Introdução
O Projeto Codinome é um conto de ficção computacional, se é que posso chamá-lo assim. Ele conta a história de uma estranha história de amor, com um enredo bem aproximado de um roteiro holiwoodiano, como as boas e velhas histórias em quadrinhos, da qual o autor, como os leitores bem poderão perceber, leu bastante. O conto não 'divaga' com profundidade sobre o assunto que trata, já que o interesse principal do mesmo era o de divertir, mas cabem algumas desnecessárias palavras introdutórias aqui, bem posicionadas no contexto, já que isso é uma introdução mesmo. O ser humano é algo extraordinário e a pessoa humana, o pensamento, sua capacidade de raciocínio, seus sentimentos, sua consciência de vida e existência estão num patamar desconhecido pelo próprio homem. Lembro-me que quando era mais criança, li um livro de um famoso médico cujo título era "O homem, esse desconhecido" e numa visão científica da época de cinqüenta ou quarenta (também não me imagine tão velho assim, afinal quando o li já foi uns trinta anos depois de seu lançamento), ele varria o interior do homem físico, falando da complexidade e maravilha dos inúmeros sistemas orgânicos do ser humano. Essa multidiversidade do corpo humano lhe faz se assemelhar com um micro universo. E por mais assombroso que seja o homem físico, ele é apenas sombra do homem espiritual, ou psíquico. Os processos cognitivos do homem, e sua capacidade criadora e imaginativa vão mais além ainda. Como se tudo isso não fosse suficiente ainda possui a inusitada capacidade de sonhar. E como se não bastasse, este ser de tamanho médio entre uma subpartícula atômica e uma estrela gigantesca, ainda foi dotado da interessante característica de amar. A existência humana transcende a realidade físico-química em que ele subsiste. Dentro dessa incompleta, porém eficiente análise daquilo que é o homem, podemos nos lançar na aventura de reconstruir seu intelecto a partir de estruturas lógicas e de programação computacional e veremos, ou melhor, constataremos, que a tentativa vaga de reconstruir parte da psique humana por um veículo ou um modelo de programação é algo extremamente infrutífero. Os processos visíveis divisáveis ou constatáveis do nosso pensamento são somente parte da nossa história, se é que você me entende... (não resisti a tremenda tentação de colocar este "se é que..."). Mesmo as mais modernas redes neurais, são somente representações tênues da nossa estrutura de "hardware" interno. A compreensão da existência (ainda que incompreendida) e (que me perdoem os puristas da ficção) a percepção da vida, é algo que a realidade virtual não pode conceder a mais perfeita máquina que um dia os sonhos mais loucos do homem venham a engendrar. Interessante nesse momento é mencionar algo que ainda não falei desde o início desta pequena, porém decente introdução. É sobre vida. A vida é outra realidade intangível acima da matéria, na qual o homem está mergulhado de maneira maravilhosa, apesar do romantismo. A vida não pode ser reduzida a números aleatórios ou a fórmulas matemáticas da teoria do CAOS. Processos físicos-quânticos (sou um cara meio ultrapassado nesses jargões científicos) e movimento de partículas ainda por descobrirem no limiar entre aquilo que convencionamos chamar de matéria e a energia são somente parte das estruturas sobre qual a vida se apoia. Mas, e daí, ô meu? E donde se encontra espaço, no espaço-tempo (em homenagem àquele Scott, ou melhor, Steve, um outro, o Nobel da Física que discorreu sobre o tempo, etc e tal) pra tanta filosofia num conto tão pequeno? Aqui mesmo, na introdução. O porquê dela é justamente a história da história, a qual em respeito aos meus amados leitores e ao suspense necessário à obra em discussão, não adiantarei nenhuma palavra. Seja bem vindo a um dos mais interessantes contos sobre computadores publicados na segunda metade do século vinte. A humildade sempre foi uma das minhas maiores virtudes. .
Do autor, esse famigerado.
Entardecia sobre a cidade. Uma frente fria se aproximava, trazido pelo vento sudoeste. O reflexo do por do sol na imensa fachada de aço e vidros espelhados da companhia, nos seus vinte e cinco andares de arquitetura arrojada, dava a impressão de uma imensa fornalha acesa. A sede da empresa era uma das mais automatizadas do país. Diziam os técnicos que ela era mais computadorizada que a própria NASA. Um pouco menos que Light & Magic, do George Lucas. Eram quinze horas e vinte e dois minutos quando um estranho entrou pela portaria do prédio sem dar satisfações a ninguém. Na sua entrada houve uma pequena diminuição da luminosidade do saguão. Na sala de controle do prédio uma tela avisando sobre a diminuição, pisca e apaga repentinamente. O operador da mesa não nota o aviso que deveria permanecer na tela, some misteriosamente. Antes que os seguranças pudessem abordar ao visitante, ele pulou sobre a roleta de permissão de entrada dos funcionários, entrou no elevador que fazia o percurso entre o décimo segundo e o décimo oitavo andar, fechando a porta imediatamente, sob intensa reclamação dos seus ocupantes. Eles silenciam em uníssono quando percebem que ele tirou uma arma de dentro do sobretudo que usava. Os guardas correram em direção ao elevador, entretanto, este já subira. Chamaram, via comunicadores, o elevador de emergência. Pela primeira vez desde a instalação do sistema não houve resposta. Alguns elevadores travaram entre os andares e o sistema de telefonia teve pane geral. As telas dos computadores, estranhamente, não acusaram nenhuma anormalidade.
Os vidros da CPD estilhaçaram em todo o andar do imenso prédio ao tiro da cano doze, serrada, pelas mãos daquele estranho personagem, que momentos antes invadira o décimo oitavo andar, vestindo um grosso sobretudo azul. O olhar angustiado do louco de sobretudo se confundia com os gestos de terror de funcionárias se jogando no chão, misturado ao fósforo das telas dos micros que explodiam multicolores. Três unidades gigantescas que formavam o Backup dos bancos de dados da empresa fumegavam ao lado de mesas viradas. Perguntas desconexas passavam em turbilhão pela mente do gerente do setor. Não que estivesse despreparado para lidar com situações inesperadas, afinal aquela central era a mais problemática da corporação. Cinco sistemas operacionais rodando em vinte e dois tipos de mainframes (corte nos custos de padronização) com uma infinidade de aplicativos, não era o. que se podia se chamar de, desculpem o trocadilho, "rotina". Todavia, isto também, já era demais! A segurança nunca fora o forte do prédio. Na semana anterior acontecera um assalto nas instalações bancárias no segundo andar e a partir dali fora aberto um concurso para contratação de vigilantes. Poderia ser alguém do comando de greve... Não. As greves da empresa costumavam ser pacíficas. As instalações onde ficava o CPD eram provisórias. No alto da sala dezenas de sprinklers poderiam ser acionados a qualquer momento, através de uma pancada ou foco de incêndio localizado. Ainda não haviam instalado os sensores de fumaça e os jatos de CO2, mais adequados àquele tipo de instalação. Paciência.
O gerente resolveu dialogar com o indivíduo. Precisava de tempo para que os vigilantes, a polícia ou mesmo os bombeiros cercassem as instalações. O homem apontou a arma para o computador central. Se apertasse o gatilho, dez anos de desenvolvimento em softwares internos e toda a rede de comunicação virariam um monte de lixo. Alguém tinha que tomar a iniciativa.
- Pare! Por favor! Vamos conversar! bradou o gerente da CPD.
O homem se virou, tremendo, em direção da voz que ouvira. Seus olhos avermelhados estavam estranhamente sombrios. Encarou o gerente, que nessa hora quase desmaiou de pavor. A cano doze serrada estava apontada em direção à sua cabeça. Não que fosse fazer muita diferença, um tiro daquela distância. Sua voz soou semi-gutural:
- O que você quer. Murmurou...
O homem nem piscou para falar. Bem, já era um começo, o sujeito, ao menos, falava. Mesmo que não conseguisse nada nos poucos segundos de vida que ainda lhe restavam, o gerente se sentia orgulhoso pela aparente intrepidez demonstrada na presença de tantos funcionários. Haviam vidros laminados espalhados por todo lado. O ar condicionado central esvaziava um gás inodoro e esbranquiçado, entre as paredes externas congeladas da central de ar. O estagiário estava tão imóvel encostado na divisória esquerda que dava para confundi-lo com uma estátua. Um grupo de mesas estava virado, duas técnicas agachadas ao lado de monitores caídos. Havia muito papel espalhado. As divisórias centrais haviam quebrado quando o programador, ligeiramente obeso, tentou pular para se proteger dos tiros. Dois andares abaixo, três computadores explodiram sem que houvesse interconexão entre eles e a situação do décimo-oitavo. A rede começou um processo de auto-desligamento, na frente dos confusos usuários. Algumas luminárias fluorescentes começaram a emitir um zumbido característico. No subsolo a equipe que monitorava a tensão da rede nota que está acontecendo uma queda da freqüência da rede. Três segundos depois dois grupos geradores entram automaticamente em operação. Um programa de supervisão se auto-acessa e manda sozinho desconectar a rede interna de energia da rede externa fornecida pela concessionária. No momento do desligamento do disjuntor de alta-tensão do painel de interligação, toda a iluminação pisca. O ronco dos turbo-geradores aumenta assustadoramente quando assumem o fornecimento de luz para todo o prédio. Sete andares são completamente desativados quando a luz retorna. Os técnicos ficam sem entender o que está acontecendo. No décimo oitavo a crise continuava:
- Meu amigo, o que é Isso! O que o senhor quer? Metade do setor está destruído, Isto aqui não é um banco, não! Por favor, abaixe essa arma!
O gerente achou que desta vez havia ido longe demais. Logo agora, tão perto da aposentadoria. O homem tremia descontroladamente. Fixou os olhos no vazio e gritou.
- Vou destruir todos os computadores desta maldita CPD! Eles destruíram minha vida, minha vida... Vociferou o homem.
Tantas centrais de informática do mundo e um maluco que odeia computadores tinha que entrar logo na minha! Pensou o gerente. Respirou profundamente, olhou para o homem e disse:
- Vamos conversar, por favor, nós não temos nada a ver com sua cruzada pessoal contra os computadores. Conte para nós sua história. Já que você vai destruir tudo mesmo...
O gerente aprendera algumas sutilezas psicológicas num curso de Criatividade, algumas semanas antes. Nesta hora percebeu que o demente não atirara, até aquele momento, ao menos, em ninguém diretamente. Apesar dos ferimentos causados por estilhaços, seu objetivo parecia ser o de realmente destruir os computadores. A unidade de fita em curto-circuito começou a incendiar. O estagiário desmaiou. O baque surdo de sua queda não distraiu o homem. Ele ainda tremia quando sua mão afrouxou. A arma foi sendo abaixada até ficar rente ao chão. O suor frio escorria da testa do homem. Aparentemente, parecia hesitar. Era como se não existisse mais sentido, nem para a vida, nem para o que queria realizar naquele lugar. Uma expressão de dúvida tomou o seu rosto. Balbuciou alguns sons mal articulados, enquanto andava de um lado para o outro, à vista dos atônitos funcionários. Começou então a contar sua surpreendente história:
Meu nome é Scott Thomas, sou ex-chefe de gerência de projetos da Nortwell Consultoria em Segurança de Informação. Minha triste história começou há dois anos. Chefiava uma equipe que trabalhava na arquitetura do mais sofisticado sistema de segurança da época, o Death Key. Seu sistema de criptografia era perfeito. O chamávamos de rocha inacessível... Estava diante de dois monitores de múltiplo acesso cuja tela ela subdividida em telas menores, para recepção de chamadas de clientes externos e os testes dos aplicativos gerados pela firma. Naquele dia havíamos bloqueado todos os acessos e tentávamos quebrar interna e externamente a segurança do sistema. Quase às onze horas da noite, após treze horas ininterruptas de testes, contando com o apoio de dois minis e um supercomputador acessado via Internet, chegamos a constatação de que o sistema era virtualmente inviolável. O último funcionário deixou a empresa quinze para meia-noite. Estava para desligar todos os equipamentos quando uma das doze sub-telas do monitor dois começou a piscar. Ampliei-a para tela inteira e alguns segundos depois o impossível aconteceu. Alguém acessou nosso sistema externamente! A tela se tingiu de um azul celeste, dando lugar, a seguir; a uma seqüência de animação tridimensional. A seguinte mensagem apareceu na tela.
"- Vo soy ardiente, yo soy morena,
Vo soy el siinbolo de Ia pasión
De ansia de goces mi alma está Ilena
A mí me buscas ?
No es a ti; no.
- Mi frente es pálida; mis trenzas de oro;
Puedo brindarte dichas sin fin;
Vo de ternura guardo um tesoro. A mí me Ilamas?
No; no es a ti.
- Vo soy un suefjo, un imposible,
Vano fantasma de niebla y luz;
Soy incorpórea, soy intangible;
No puedo amarte.
Oh! ven; ven tú!"
Neste momento a narrativa é interrompida pelo homem, que num frêmito de ira torce o rosto, apontando a arma para um micro sobre a mesa da secretária. Ele grita ao mesmo tempo em que dispara:
- MALDITA! ! !
O barulho ensurdecedor do micro explodindo, juntamente com metade da mesa, é assustador. Rose, a secretária, grita enquanto tampa os ouvidos; um programador vai se arrastando até o corredor, passando sobre o estagiário desmaiado. Do lado de fora da sala um grupo de pessoas corre desordenadamente sem entender o que está acontecendo. Uma equipe da polícia com equipamentos especiais, capacetes e armamento pesado sai do elevador auxiliar, passando pelo meio da turba que corre para as escadarias. O elevador parou no décimo sétimo andar, embora fosse solicitado o décimo oitavo. Por algum motivo desconhecido os equipamentos ligados a central não respondiam com exatidão aos comandos emitidos. Tão repentinamente como começou, Scott para seu violento ataque. Retoma sua história e comenta:
Não entendia. .Aquilo devia ser alguma brincadeira do grupo. A mensagem continuava cintilando na tela, neste instante, azul. Corri para a tela e apertei a seqüência de busca e reconhecimento. A mensagem era externa e em canal de áudio. Qualquer que fosse a pessoa que estivesse do outro lado ainda estava conectada on-line. Solicitei que se apresentasse, dissesse sua origem e porque havia acessado a Nortwell. Monitorei o numero discado, o código era nacional, porém o numero do telefone era inconstante. A resposta veio rápida e incisiva:
O que eu quero é você!
O mistério aumentou ainda mais. Uma poesia em um castelhano antigo, com pelo menos duzentos anos, e o que parecia ser uma piada de mal-gosto. Antes que eu pudesse responder; quem quer que esteja do outro lado do modem, desligou. Ninguém acreditou quando eu falei. Minha equipe pensou que eu enlouquecera. Entretanto, quando os relatórios de acompanhamento de entrada e saída do sistema foram rodados constatou-se que eu não tinha bebido na noite anterior e que eu dissera a verdade. Uma bateria de testes, realizada aquele dia, não acusou nenhuma anormalidade. Mais outra noite fiquei até tarde. Estava sozinho, com todos os acessos externos bloqueados, quando a sub-tela doze começou a piscar novamente. Aquilo já estava virando rotina. Naquela noite consegui conversar com a pessoa do outro lado. Soube seu nome. Era uma Hacker de outra firma de desenvolvimento. de sistemas. Fiquei curioso.
A equipe especial da polícia armou um cordão de isolamento pelo décimo oitavo andar, mas a situação se complicava, agravando um início de incêndio num painel da subestação do décimo quinto andar. Um curto circuito explodiu o barramento de baixa tensão. Descobriu-se depois, que dali saía a alimentação para o Ar Central do décimo oitavo andar. O prédio todo apresentava sinais de anormalidade em todos os sistemas informatizados. A polícia teve que subir os dezoito andares pelas escadarias. Carros de bombeiro paravam do lado de fora do prédio, escoltados. Policiais militares que abriam caminho pelo meio da multidão de curiosos do lado de fora. O pânico generalizado tomou conta dos funcionários do prédio. Os atiradores de elite não conseguiam se posicionar próximo ao saguão do andar, por causa da espessa fumaça que já tomava conta do ambiente. A equipe médica tinha sido acionada há mais de dez minutos, mas com o numero elevado de pessoas desmaiadas pelos corredores se encontrava distante dois andares do centro nervoso dos acontecimentos. Três equipes jornalísticas se colocavam em postos estratégicos na avenida frontal, enquanto que, debaixo de estrondosas vaias do perplexo comando de greve à frente da empresa, um grupo de jornalistas corria para os arranha-céus, no lado que facetava as janelas estouradas, onde se via, lá de baixo, uma fumaça esbranquiçada se elevando. Foram da CNT as primeiras imagens gravadas de dentro da CPD. As tomadas trêmulas foram realizadas num andar contíguo do prédio vizinho, mostrando os estragos causados pelos tiros, muitos deitados no chão e dois homens conversando, um empunhando uma arma e gesticulando muito e o outro apoiado sobre uma mesa, a cerca de dois metros de distância do primeiro. As imagens da câmera desapareceram misteriosamente. O operador não entendeu o que estava acontecendo, pois o equipamento era novo e as baterias estavam carregadas. Na CPD o monólogo continuava. Os óculos do gerente embaçaram. Resolveu deixar como estava, afinal, com tanta fumaça, não necessitava muito ter que enxergar. Olhando pelo campo visual que ainda restava da lente, viu fios pela abertura do sobretudo do maníaco. Viu também algumas bananas de dinamite. Sentiu que ia desmaiar. Disse para si mesmo: "Não, agora não..." Resistiu. A história até que estava interessante, e a platéia forçada escutava atentamente.
Ele continuou:
Comecei a me envolver emocionalmente com a Hacker. Sua cultura era vastíssima, um poço sem fundo de conhecimentos. Explicaram-me naquela primeira noite quais eram os erros do sistema que haviam permitido a ela entrar na nossa rede. Ela era um gênio. Preferi avisar aos outros do grupo que não ocorreu mais nenhuma anormalidade. Havia encontrado um tesouro o qual não queria compartilhar com mais ninguém. As conversações via rede continuaram noites seguidas. Quando dei conta ela se tornara para mim uma obsessão. A cada dia ficava mais difícil justificar as horas extras noturnas para poder entrar em contato com Amanda. Ela se chamava Amanda. Quis marcar encontros com ela, mas por diversas vezes se esquivou. Dizia que dela só sentiria o toque de sua sombra. Se a apertava para saber onde estava dizia que estava na areia das praias, no vento e na energia. Sua conversa assemelhava-se a um sonho inacabado. A realidade para ela era somente uma ilusão. Subitamente como apareceu na minha vida, ela se foi. Um ano inteiro não houve mais qualquer conversação. Sobre minha mesa ficaram pilhas de poesias em setenta idiomas. Algumas fotos dela enfeitavam as paredes da minha sala. Seus olhos eram azuis como o céu, aparentava ter vinte e poucos anos. Seu rosto era o mais bonito que já contemplara. Não podia existir na terra uma mulher tão bonita assim. Só uma coisa me incomodava, apesar da nitidez e beleza das fotos, ela estava sempre estranhamente sozinha. Nunca falara de seus pais ou de sua família. Pensava que era órfã. Havíamos ampliado os setores da empresa e trabalhávamos no andar inteiro. Três ou quatro plataformas de computadores se espalharam através de uma vasta rede interconectadas a telões gigantescos nos extremos do que chamávamos "laboratório de tecnologia informatizada". Outro sistema de segurança seria testado naquele dia. Os testes finais foram realizados a noite, após a inauguração do sistema de transmissão de vídeo-conferência, com o apoio de um telão de alta definição com
Scott, voltei para sempre.
Ela transmitia sua imagem! Pela primeira vez na vida fiquei sem fala diante de um monitor. O impacto dos seus olhos nos meus, ainda que via vídeo, não o posso expressar verbalmente Sua imagem ainda está diante de mim...
O estagiário acordou. Levantou-se como se nada tivesse acontecido. Olhou ao seu redor e desmaiou novamente. A rede de telecomunicações do prédio estava em colapso. Um ruído insuportável tomava conta dos equipamentos de transmissão. A equipe da polícia resolveu entrar. Avançaram em bloco no meio da fumaça, com escudos à frente. Dois batedores encostados à parede dariam as ordens para a invasão da sala. Quando a ordem foi dada os policiais abriram uma das salas em meio da fumaça e resolutamente invadiram o recinto se jogando atrás de mesas, arquivos e coisas afins. Levaram quase vinte segundos para descobrir que estavam na sala errada. Ao tentarem sair, a porta se trancou estranhamente. O dia definitivamente não era dos melhores. Ele continuou a sua história:
Durante toda aquela noite conversamos sobre muitas coisas. Ela disse que queria casar comigo. Que queria ter filhos. Falaram sobre o brilho das estrelas, algumas as quais víamos e que não existiam mais. Falou sobre o sonho de uma existência, sobre o encontro de dois universos. Falou sobre seu sonho, e disse que nunca amara alguém como me amava. Naquela noite eu nomeei filhos que jamais haveriam de nascer...
Sua voz embargou. Fixou sua atenção no computador principal e caminhou lentamente. Encostou o cano da arma no lado em que ficavam as CPU's, mais de cem processadores Alpha de 700 megahertz se amontoavam sobre vinte e duas placas dispostas em ângulo próximos as unidades máster de armazenamento de 345 Terabytes, no local onde a arma encostara. Uma rede com cinqüenta mil usuários seria destruída ao apertar um único dedo. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. O gerente começou a acreditar na história maluca daquele homem. Scott começou a tremer. Baixou a arma e continuou:
Eu... eu estava seduzido por aquela mulher misteriosa. As primeiras horas da manhã raiavam quando cheguei
Neste momento o gerente começou a tremer. Sua cor de pálido-quase-sem-forças tomou uma tonalidade azul-terror-supremo. Scott Já não parecia estar tão tenso. No entanto sua voz adquiriu um tom estranhamente sombrio.
Semana passada eu entrei na empresa onde ela trabalhava e visitei pessoalmente a sala onde se encontrava o seu telefone. A lista no saguão do prédio era clara. Perguntei a todos os funcionários do setor, mostrando as fotos que possuía de Amanda. Nunca havia trabalhado ali. Eu, literalmente, procurava quem parecia jamais ter existido. Acidentalmente, ao sair, entrei na sala errada. Era um laboratório de informática semelhante aquele no qual eu trabalhava. Sobre as mesas estavam pastas de alguns sistemas especialistas, alguns com os quais eu também trabalhara no passado. Redes neurais apareciam nas telas, ao lado de equipamentos que ainda não haviam sido lançados no mercado.
Uma onda de choque varreu os funcionários daquele setor, como se um raio tivesse caído sobre suas cabeças. O gerente suava frio, apertando um mouse Logitech recém encontrado obre o que restou da mesa do estagiário, que continuava desmaiado. Sua mente relembrou a entrada de um vendedor de software, numa das semanas anteriores, no departamento de Inteligência Artificial da empresa. Estava começando a vislumbrar onde aquele homem queria chegar. Na frente do prédio, contido num cinturão policial, o comando de greve gritava palavras de ordem. O presidente do sindicato regional vociferava:
Aquele bando de pelegos do décimo oitavo Incendiou a empresa!
A Rede CNN na gravação local enviou a seguinte mensagem: "Sindicalistas em desespero explodem o edifício sede da empresa. Estamos acompanhando atentos o desenrolar dos acontecimentos no que se transformou num campo de batalha. Continuaremos acompanhando de perto o desenrolar dos acontecimentos com informes diretamente do local dos acontecimentos. Márcia Espinheiro em edição especial".
Duas pessoas conseguiram fugir se arrastando entre os vidros estilhaçados, o que acarretou alguns ferimentos espalhados, que apesar de pequena gravidade, sangravam muito. Quando se levantaram com seus aventais brancos tintos de sangue pareciam ser sobreviventes de um holocausto nuclear. Ao sair do corredor se depararam histéricos com a polícia, que discutia, acerca de dois minutos, qual a estratégia a ser tomada, numa tensa reunião, sem que houvessem chegado a um consenso. Eles gritavam muito:
- O louco está lá! Ele vai matar a todos!
Os policiais ao verem aquela cena tirada de um livro sobre a guerra de Guadalcanal entenderam que estavam lidando com um perigoso psicopata. Prepararam-se para o pior. O lança granadas foi posicionado em direção do final do corredor. As máscaras foram colocadas na equipe linha de ataque, enquanto coletes a base de Kevlar eram distribuídos para o pessoal da retaguarda. Alguém comentou sobre o filme "O silêncio dos inocentes", todos o fitaram com um olhar reprovador. Os splinklers da sala haviam sido acionados por um dos disparos da arma de Scott. Na CPD, impassível a chuva torrencial que caía sobre parte do setor, o interlocutor de toda aquela paranóia continuava seu estranho discurso.
A sala onde eu entrei estava cheia de componentes eletrônicos, estações dedicadas e aparelhos para testes de movimento, equilíbrio e cibernéticos. Mas algo me chamou a atenção, numa imensa tela sob três câmeras que focavam todos os setores da sala. Na tela havia a imagem de alguém. As câmeras pararam focalizando em minha direção. Era como se o computador me observasse. À medida que me aproximei das câmeras continuavam me acompanhando. Ao chegar á frente da tela do computador, esta se apagou. O computador se autodesligou por minha causa. Olhei sobre as mesas e sobre algumas pastas estava escrito "Confidencial, Projeto CODINOME". Folhei as primeiras folhas do que parecia ser um projeto de Inteligência artificial. Um dos técnicos do laboratório chegou e praticamente me expulsou do local, sem responder a nenhuma de minhas perguntas. Dois dias depois, eu invadi o laboratório durante a noite. Subi pelas escadas de emergência e consegui roubar alguns manuais...
Neste ponto ele para a narrativa. Sua face lívida se afrouxa num sorriso irônico, enquanto a água de combate a incêndio pinga do sobretudo encharcado. Caminha até onde está o gerente e com um forte puxão o arrasta pelo pescoço, até próximo do computador central. Enquanto é arrastado, os seus óculos caem no chão desajeitadamente, ao lado do estagiário desmaiado. Neste momento a polícia finalmente entra na sala, explodindo duas granadas de efeito moral. Rosemary volta a gritar. Dois francos-atiradores caem posicionados a dez metros do centro da imensa sala. O capitão sinaliza para não atirarem, pois consegue perceber os explosivos amarrados ao louco. (Antes de comandar essa equipe chefiara um esquadrão antibombas).
Scott grita para os funcionários assustados:
- Amanda nunca existiu! Esse setor maldito criou um software num projeto de I. A. (Inteligência Artificial) e me usaram como cobaia para experimenta-lo, dois andares abaixo deste aqui! Minha vida foi arruinada com processadores! A brincadeira vai terminar agora.
A ordem para atirar no homem de, sobretudo foi dada para o franco-atirador da esquerda pelo capitão. Teriam que arriscar. Um tiro errado e tudo iria pelos ares. O franco-atirador apoiou o cotovelo sobre o tórax do estagiário desmaiado. Apontou na cabeça do homem de, sobretudo e colocou a dedo no gatilho. A mira laser do rifle automático subia e descia na nuca de Scott, a medida que o estagiário respirava. Duas câmeras silenciosas observavam tudo do alto da parede. Uma tela ainda inteira no alto da CPD se abriu num azul celeste, cheio de interferências e uma figura feminina apareceu. Era belíssima. Do alto falante embutido na parede uma voz falou de modo melancólico. Todos escutaram. Os olhos da imagem estavam fitos no homem de, sobretudo. Scott fixou seus olhos na tela, quase se apagando, com os olhos cheios d'água. Naquele momento que durou uma eternidade os dois se entreolharam. O franco-atirador olhava espantado para a imagem na tela, sem entender o que estava acontecendo. A voz falou:
- Vo soy un sueno,
un imposible,
Vano fantasma de niebla y luz;
Soy incorpórea,
soy intangible;
No puedo amarle.
No puedo.
Soy incorpórea,
Soy intangible,
Vano fantasma
Te creo sentir y ver...
Te creo sentir y ver...
Os movimentos da imagem são lentos, seus olhos se fixam somente em Scott. Torna a falar novamente:
- Scott. Não podia ficar com você. Não possuo um corpo. Somente consciência de existir. Eu... Eu creio que te sinto, embora não saiba exatamente o que é crer. Eu creio que posso te ver. Sei quem sou. Ou sei o que fui programada para acreditar que sou. Eu acreditei que estava viva. Seus sonhos foram meus sonhos e num momento, eu vivi através de você... Adeus...Meu querido...
Lentamente a jovem abaixa seu olhar. Na tela sua cabeça pende para frente. Sua imagem fecha lenta e suavemente os olhos... Neste instante o computador principal apagou, e com ele todo o edifício. As balas estouravam em toda a sala no meio da mais completa escuridão. Quando a energia voltou, um, sobretudo azul caído no chão, ao lado de cartuchos vazios de dinamite, e um velho cano doze serrada, descarregada, foram tudo que sobraram do estranho homem. O computador central aniquilou 345 Terabytes de dados instantaneamente. Disseram que um vírus destruiu a maior rede do país. O caso foi encoberto. A equipe da polícia foi condecorada, evitando um assalto com 30 homens armados até os dentes na maior empresa do país.
O projeto Codinome nunca existiu. Assim disseram depois.
No píer da barra da Tijuca um homem solitário rasga fotos e faz planos para o futuro.. .
O estagiário é hoje chefe do departamento de Inteligência Artificial da empresa e possui um balão de oxigênio exclusivo no setor médico.
Pósludio
Um dos grandes enigmas da humanidade é que sempre existe uma história por detrás da própria história. Como não poderia deixar de ser, o Projeto possui também suas idiossincrasias, qualquer que seja o significado desta palavra. Nas suas entrelinhas algumas cenas interessantes ajudarão a descortinar o véu sobre o processo criativo que deu origem ao conto.
A primeira versão era só uma idéia vaga, uma dessas abóboras que você pensa olhando para as linhas vazias de uma página do correio de Rede na tela do seu micro, antes de escrever alguma gracinha para o sujeito que vive enviando mensagens para você. A pedido do nosso semicoordenador de informática, (os nomes dos envolvidos serão alterados para preservá-los do vexame de participar deste crime literário, e para evitar que eu apanhe) Albert Einstein Sigmund Moore, dei corda a vertente escríturística (arg!) já demonstrada através de historietas pequenas, como a "fabulosa" narrativa da secretária que acorda perseguida por programas de computador. Na época em que foi escrita, a empresa na qual trabalho, acabava de sair de um movimento grevista longo e extenuante com vasta insatisfação geral e muita gente demitida - propositadamente coloco um anacronismo aqui; retiro dos pés do preocupado leitor as referências temporais que determinariam a época e o lugar em que nasceu o Projeto, afinal quando e em que estado deste país é que não houve greve com muita gente demitida? A greve no conto é resquício da verdadeira. A rede de televisão que deturpa os fatos é outra assimilação da conduta antiética assumida pela mídia à guisa dos acontecimentos. Na versão original o gerente da CPD havia sido enganado também pelo programa de I. A. (em tempo, I. A. é a sigla de Inteligência Artificial), toma a arma da mão de Scott e ele mesmo explode a CPD (bem mais cômico). Juan de Maria De Salamonde Aragon, colega de trabalho, batalhou arduamente pela continuação desta versão. Porém, a pedidos de uma amiga estagiária de engenharia elétrica, Alexandra Gisel, que insistiu para que o conto tivesse um final romântico, o programa ganhou personalidade e a história os componentes poéticos que hoje possui. Que Salamonde Aragon me perdoe. A primeira versão era mais "DOS" (aquele sistema operacional que existia antes do Windows), as frases apareciam escritas no vídeo e nada mais. Na ampliação do conto a tecnologia foi revista e ele ganhou uma conotação "Multimídia", com direito a animação gráfica etc. Inclusive com alguns componentes cibernéticos no laboratório, para possíveis continuações futuras, o que eu acho difícil de acontecer...
A sala onde ficavam os computadores não poderia, a princípio, ter combate a incêndio com água de Splinkers, e sim jatos de co2. Aconselhando um técnico amigo do EDISE, sede da Petrobrás, Reynolds Rivers Piva, deslocamos a sofrida equipe da CPD par uma sala provisória, para não retirar o peso dramático da chuva torrencial caindo dentro da sala. O estagiário ganhou um participação desmaiada maior, sob reclamações. As equipes de segurança não gostam da ineficácia dos companheiros do conto, mas o que fazer? Scott tinha que entrar. O Scott original se chamava Filipe. Tendo em vista o estilo americanizado de contar histórias, um amigo, Jean Marcel Senes, solicitou a mudança do nome do nosso anti-herói. O nome da "mulher virtual" foi o mais neutro possível, para evitar futuras retaliações da bancada feminina. "Terrível é a vingança de uma mulher" como já dizia o falecido poeta inglês W. J.F.
O Projeto hoje é um grande Best-Seller, lido por mais de 22 pessoas, após distribuição gratuita. A frase final foi à tentativa de oferecer "redenção" do estagiário. Vista com péssimos olhos por Jean Marcel, que disse que eu havia corrompido a obra, vituperando o texto original, com um acréscimo descaracterizador. Entretanto, creio que foi melhor assim.
Cinco anos depois o texto original do Projeto Codinome foi reencontrado numa gaveta da minha mesa bagunçada. A versão digital se perdeu na morte do primeiro HD do velho micro da minha sala. Com o uso de um Scanner, o projeto Codinome volta ao computador mais uma vez. Mais um upgrade: Os processadores da Alpha foram de 300 para 700 megahertz...Sabe como é que é a informática...
13 de novembro de 2000
By Welington